O Deus das Avencas Desespero e Esperança em Três Diferentes Narrativas
Ao longo das três novelas reunidas no recém-anunciado semifinalista do Prêmio Oceanos O deus das avencas (Companhia das Letras), o vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura, Daniel Galera, recorre ao passado recente e ao futuro distópico para abordar temas ligados a perdas, expectativas e múltiplas formas de violência.
As narrativas fluídas, com diálogos afiados, evidenciam abismos sociais e colocam em primeiro plano as questões políticas tão caras ao autor.
A primeira narrativa (que dá nome ao livro) tem como protagonistas o jornalista Lucas e a professora de literatura Manuela, que está prestes a dar à luz ao primeiro filho do casal. A tensão já pré-estabelecida pela criança não planejada, embora muito bem-vinda desde o início, se torna ainda maior com o cenário das eleições presidenciais de 2018.
À medida que as contrações se tornam mais frequentes, um clima crescente de angústia paira sobre os personagens. Em pouco tempo, as preocupações relativas ao parto passam a ser estendidas ao campo político pouco esperançoso para Lucas e Manuela, dois progressistas acuados pelos discursos antidemocráticos que se espalham pelo país às vésperas das eleições.
Aqui Galera constrói uma tensão claustrofóbica que se instala pouco a pouco, ao colocar elementos do segundo turno de 2018 em oposição a toda a esperança que o nascimento de uma criança pode significar.
“Pelo menos na cabeça dele, afloravam de vez em quando cenários especulativos de caos social, desastre climático ou rompimento definitivo com o modo de vida urbano, forçando-os a uma reclusão heróica e hedonista no aconchego do lar ou ao refúgio idílico em rincões distantes.”
Tóquio
Na novela “Tóquio”, o autor apresenta uma sociedade em que consciências humanas podem ser transplantadas para os mais diversos tipos de dispositivos tecnológicos. A narrativa foca na conturbada relação entre o protagonista e sua mãe, uma empresária bem-sucedida da qual pouco se sabe a respeito.
A estrutura não linear da história possibilita um contato com diversas fases da vida do personagem-narrador, em especial um jantar com a mãe e a ex-namorada em Tóquio e algumas sessões de terapia em grupo – encontros realizados para que os proprietários de dispositivos com a consciência de seus familiares já falecidos possam dividir experiências, inseguranças e frustrações.
Ao focar na relação entre filho e mãe, o autor explora muitas camadas de um Complexo de Édipo mal resolvido, como a dependência emocional e a constante busca por aprovação, ainda que os dois personagens tenham visões ideológicas bem diferentes.
No subtexto aparecem muitos outros temas, como a falácia da meritocracia, a busca pela perpetuação da existência e os abismos impostos pela desigualdade social.
“A jovem funcionária olhou para mim e depois grudou o rosto em sua tela. “Uma pessoa é um corpo?”, me perguntou Maria, capturando de novo minha atenção. “Uma pessoa é o conjunto de seus estados mentais? Seria ela a soma das duas coisas?” Ela fez uma pausa antes de responder à própria pergunta retórica. “Uma pessoa não é uma coisa nem outra, tampouco a soma delas.”
Bugônia
Na terceira e última narrativa de O deus das avencas, “Bugônia”, uma comunidade pós-apocalíptica chamada Organismo sobrevive em meio a um delicado equilíbrio com o meio ambiente. A protagonista Chama é uma jovem que não chegou a conhecer o mundo antes da proliferação da peste do sangue, doença responsável por dizimar boa parte da população.
Curiosa sobre o passado e sobre tudo o que acontece para além do Topo, ela vê sua pacífica comunidade se transformar radicalmente a partir da chegada de um astronauta. Chama se depara, então, com o violento incômodo causado pelo medo irracional do estrangeiro.
“A Velha pergunta a Alfredo o que exatamente a chegada do astronauta significa, pois esse significado, que parece tão evidente ao Alfredo, lhe escapa. Depois diz que nada do que consta nos livros e jornais velhos poderá nos dizer o que fazer com esse humano, mas o que faremos com esse humano dirá o que seremos desse momento em diante.”
Temas contemporâneos
O deus das avencas apresenta histórias bem diferentes de tudo aquilo que Daniel Galera havia apresentado em obras anteriores, como Até o dia em que o cão morreu (2003), Mãos de cavalo (2006) e Barba ensopada de sangue (2012).
Suas “obsessões” literárias, no entanto, continuam aqui, em meio a personagens insatisfeitos, discussões sociais relevantes e parágrafos bem estruturados.
Cada uma das três histórias aborda grandes temas contemporâneos a partir de perspectivas originais, em que o desespero e a esperança se repelem e mais tarde se abraçam, numa alegoria precisa de um Brasil desigual e à beira do caos.
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Texto por Bruno Inácio
Olá, tudo bem?
Não conhecia a obra, mas o fato de trazer três novelas me anima, pois gosto bastante quando podemos conhecer diferentes histórias em uma mesma obra. O fato de abordar temas contemporâneos também é um plus a mais para conhecer. Arrasou no post!
Gostei muito da resenha. Como sempre muito bem elaborada. Gostei bastante do livro.
Eu gosto de livros com histórias diferentes, acho que flui mais, na verdade gosto de todo tipo de livro rsrs, valeu pela indicação, já está anotado aqui!
São histórias incríveis com temas que faz a gente pensar, analisar, gostei muito de conhecer, deu bastante curiosidade pra ler, bjs.
Oi! Eu adorei a resenha 🙂 a história é bem interessante, fiquei muito curiosa!