Traumas, Sonhos e Desejos em Pequena Coreografia do Adeus
Pequena coreografia do adeus (Companhia das Letras), segundo livro de Aline Bei, é uma obra sensível, capaz de tocar em muitas feridas da vida cotidiana, especialmente aquelas que podem parecer esquecidas num primeiro momento.
Assim como fez em O peso do pássaro morto (vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura), a autora utiliza uma estrutura narrativa própria, em que a prosa poética dá voz a personagens fortes e muito bem construídas.
Em Pequena coreografia do adeus, a personagem-narradora é Júlia, uma jovem escritora que deseja se entender com os muitos traumas vivenciados durante a infância, a maioria deles provocados pela relação conturbada de seus pais.
Tímida e solitária, ela busca encarar o passado para viver melhor no presente e, ao mesmo tempo, amadurecer sua escrita e se entregar a outras manifestações artísticas.
Nesse caminho, é acolhida por algumas pessoas e confrontada por outras. No entanto, a autora evita tratar as relações a partir da simples dicotomia entre bem e mal, ao apresentar personagens complexos, com suas próprias motivações e contradições.
Trecho 1
fulano deve ser ótimo, pensamos
e as respostas ficam em suspenso
amamos a possibilidade
de a pessoa ser exatamente aquilo que projetamos nela.
os estranhos não nos doem porque ainda não nos decepcionaram
e se mantivermos tudo a uma boa distância: seguirão sendo
essa doce incógnita.
Os traumas
Aline Bei recorre a uma narrativa organizada em linhas desiguais, capaz de evidenciar as quedas e recomeços da personagem-narradora. Isso aparece tanto na narrativa em si quanto no diário escrito por Júlia.
Essa estrutura faz com que as situações vivenciadas pela protagonista se tornem ainda mais incômodas, especialmente as constantes surras dadas por sua mãe e o distanciamento emocional de seu pai.
Quando criança, Júlia busca um afeto que não vem. Tenta entender o que acontece à sua volta, mas tudo que encontra é violência e negligência.
A situação se torna ainda mais grave após o divórcio dos pais. Com a separação, a mãe deposita em Júlia toda a sua frustração e passa a dar surras cada vez mais frequentes e violentas.
Já o pai, numa situação típica da sociedade machista em que vivemos, torna-se aquele “cara legal” que aparece de vez em quando. Ao mesmo tempo, passa a namorar mulheres mais novas e a se sentir livre como Júlia jamais fora.
Todas essas situações, infelizmente, são vivenciadas por muitas pessoas e continuam a ser reproduzidas dia a dia. Por isso, inclusive, a própria autora não coloca a mãe de Júlia como uma pessoa desumana, mas sim como alguém que reproduz comportamentos violentos após vivenciar muitas formas de sofrimento.
Júlia, por outro lado, consegue romper esse ciclo, justamente por compreender melhor todas essas questões estruturais e por ter na arte um espaço de sublimação, conceito da psicanálise que, de forma bastante resumida, consiste em transformar pulsões socialmente inaceitáveis em algo “produtivo” e bem visto.
Trecho 2
quando terminou estava Exausta.
Mandou eu limpar
toda aquela merda
para que eu compreendesse, enfim
que quebrar uma coisa
sempre tem as suas consequências
e eu pensei: Depende.Depende
de quem você é.
Estilo e reflexões
A narrativa, dividida em apenas três capítulos (respectivamente, Júlia, Terra e Escritora), é repleta de movimento. Caminha entre passado e presente, revisita as relações familiares e evidencia o papel desempenhado pela infância em tudo que se segue a esse período da vida.
Provoca reflexões a respeito do quanto é subjetivo o momento que põe fim à infância e aborda questões relativas às mais diversas formas de violência, mesmo aquelas praticadas “sem querer”.
As frases curtas adotadas por Aline Bei constroem um estilo literário próprio sem que isso cause qualquer prejuízo à construção psicológica dos personagens.
Júlia, por exemplo, reflete sobre medos, desejos e sonhos de maneira sensível e convincente. Carrega culpas que não são suas e, pouco a pouco, encontra o seu lugar em sua própria história.
Mais uma vez Aline Bei toca em temas que machucam e expõem uma sociedade um tanto quanto disfuncional. Júlia, no entanto, é mais uma voz que, apesar de todas as feridas, se impõe.
Pequena coreografia do adeus é um livro desafiador, não só pelos temas, mas por exigir um olhar para dentro. Sair ileso da história de Júlia ou da escrita envolvente de Aline Bei não é uma opção aqui.
Trecho 3
não se preocupe, teremos uma conversa em família – ela explicou, me
conduzindo na direção oposta da que eu planejara
e nessa hora eu tive que segurar a boca
pra não rir no rosto dela que não merecia, mas deu vontade
de dizer que: uma conversa em família
nunca foi possível, não na minha casa
lá somos três solitários
irreversíveis
gravemente feridosda guerra que travamos contra nós.
ainda que meu pai não more mais com a gente, seu fantasma está por toda
parte
e flana
pelos corredores
somos
ruína e pó.
nosso jeito de conversar, diretora, é nos machucando.
Ficha técnica
Pequena coreografia do adeus
Autora: Aline Bei
Editora: Companhia das Letras
Ano: 2021
Páginas: 286
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Texto por Bruno Inácio
Oi!
Lendo sua resenha fiquei me perguntando em quantas famílias acontecem a mesma situação, pois na sociedade em que vivemos os valores as vezes são outros. Julia deve ter sofrido muito e os traumas desde pequena são difíceis de serem esquecidos. Fiquei curiosa sobre sua interação com os pais depois disso e como terminou essa história, obrigado pela dica, parabéns pelaa resenha, bjs!
Parece bem interessante, porém eu não me sinto bem lendo livros nessa temática pois acabo ficando mal por causa dos meus próprios traumas.
Gostei da proposta do livro e dos trechinhos que você trouxe. Acho que leria o livro.
Simplesmente incrível, não conhecia a obra, mas gostei dos trechos apresentados!
Abraços, Alécia <3
Oi! Eu adorei a sugestão de leitura 🙂 é bem interessante. Não conhecia o trabalho da autora é maravilhoso!
É um livro que emociona, Julia é uma personagem que sofreu muito com os traumas, é um bom livro, abraços.